“Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. De sorte que, ou vivamos ou morramos, somos do Senhor.” (Romanos 14:8)

Na sua tragédia Electra (cerca 410 A.C.), Sóflocles imagina um drama familiar em torno do homicídio do pai de família, Agamemnon, e a busca por vingança de dois dos seus filhos, Orestes e Electra. Orestes era dado como morto mas, eis que regressa para vingar o seu pai. Ao encontrá-lo, a sua irmã Electra não esconde a alegria: “Agora, pois, que vieste a mim tão maravilhosamente, comanda-me conforme a tua vontade; pois, ficasse eu só, teria alcançado uma de duas coisas, – um nobre livramento, ou uma nobre morte“.

Uma nobre morte, ou, como ouvimos mais frequentemente, uma boa morte. Todos a desejamos mas, o que é exactamente uma boa morte? Para a personagem de Sóflocles a boa morte era um misto de heroísmo e vingança. As histórias têm normalmente uma visão muito romântica da morte. Alguém morre para salvar outros, ou morre por uma causa, ou morre tentando viver intensamente. Para muitos essa é a boa morte. Para outros, é a morte tranquila. Uma passagem durante o sono, sem dor, quase imperceptível. Um dos grandes terrores da morte é que o encontro com ela seja longo e sofrido. É por causa desse medo que surge a ideia de eutanásia (literalmente do grego, boa morte). Conforme entendemos o termo hoje, a eutanásia é o acto pelo qual ajudamos alguém a morrer. Outros termos têm sido usados: suicídio a pedido, suicídio assistido, antecipação da morte, antecipação do fim de vida, morte medicamente assistida, etc.. Outra citação atribuída a Sóflocles é: “O pior não é morrer, mas ter de desejar a morte e não conseguir obtê-la“. Perante alguém em profundo sofrimento, a ponto de desejar a morte sem achá-la, ajudar essa pessoa a morrer parece um acto de misericórdia.

O meu avô materno morreu numa unidade de cuidados intensivos após uma batalha, perdida, com um cancro. O meu avô paterno morreu em casa, na sua cama, durante o sono. Antes disso, passou anos em hemodiálise por causa de uma insuficiência renal. A avó paterna morreu como culminar de sucessivos internamentos por infecções pancreáticas, e um longo e doloroso caminho de perda de capacidades, memória e lucidez causados pela demência. A avó materna sobrevive limitada a uma cama, há quase uma década, com dores, múltiplos internamentos por insuficiência respiratória, mas perfeitamente lúcida. Já a ouvi desejar a morte, não provocada, mas no tempo de Deus, que ela espera seja em breve. Mas de cada vez que a visito e levo os meus filhos, seus bisnetos, parece que as forças se renovam e a vontade de viver mais um pouco silencia os pensamentos sombrios de quando a dor é mais intensa.

Partilho a minha vivência pessoal para dizer que não sou estranho ao sofrimento de quem está no vale da sombra da morte. Não quero tratar a questão levianamente, nem desconsiderando os argumentos de parte a parte. Como li recentemente, e concordo, “assumamos, sem birra preconceituosa, a bondade de ambas as posições conflituantes: nem caçadores de velhos aqueles que votaram a favor nem sádicos inconfessados aqueles que votaram contra.” (Miguel Granja, Sapo 24) Isso não quer dizer, contudo, que a escolha por uma ou outra posição seja moral e eticamente neutra. Não é! Por isso, a reflexão ética e moral não se esvazia pela aprovação de uma lei que define determinado comportamento como legalmente aceitável.

Alguns dos argumentos usados pelos defensores da eutanásia são a livre escolha de cada indivíduo, o sofrimento perante doenças irreversíveis e fatais, o custo de tal condição nos relacionamentos próximos e a dignidade da pessoa humana. Consideremos, por vez, cada um dos argumentos.

A livre escolha não é, nunca foi, um valor absoluto. A minha liberdade está, em muitas áreas – para não dizer todas – limitada por outros valores que enquadram qual o leque de escolhas livres que eu posso, em consciência, fazer. A ideia de que eu posso escolher o que quer que seja sem poder ser contrariado é um exagero ideológico do pensamento moderno, que está na base de muita da conflitualidade social e cultural em que estamos mergulhados hoje. É, simultaneamente, causa de injustiças mais do que progressos civilizacionais. (Note-se, a propósito, em relação à interrupção voluntária da gravidez, que a liberdade de escolha da mulher, tomada enquanto valor absoluto, priva o pai do seu direito à paternidade sem que possa, de algum modo, fazer valer a sua vontade ou desejo.) A respeito da morte voluntária cai-se numa flagrante contradição: um suicida é impedido de cumprir o seu desejo mas alguém que pede para morrer (eutanásia) está a fazer uma escolha válida e aceitável. Por que é que num caso insistimos em manter a pessoa viva e no outro consentimos na morte? Por que é que num caso consideramos que a escolha não é livre – haverá alguma razão para que aquela pessoa se sinta empurrada para pôr termo à vida -, enquanto no outro argumentamos que não há nenhum condicionante à decisão? Por que é que num caso nos sentimos compelidos a ajudar – impedindo o acto, revertendo medicamente uma acção que conduz à morte, prestando apoio psicológico, etc., sendo esse o acto de misericórdia, e no outro, a misericórdia consiste em desistir do outro? Qualquer escolha, ainda que livre, deve respeitar o conjunto de valores que globalmente acolhemos enquanto sociedade humana. Nesses está o valor da vida e da dignidade da pessoa humana que, mesmo sem pendor religioso, preservamos na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos do Homem.

O sofrimento é, talvez, a dimensão desta discussão mais difícil de tratar. Em parte, porque é aquela que mais rapidamente desperta uma resposta emocional, e também, porque é difícil de catalogar. Quanto é um sofrimento irreversível que justifica e valida o desejo de morrer? É um sofrimento físico ou também psicológico, emocional ou mental? Como podemos aferir estas coisas? A lei em aprovação em Portugal limita, para já, a opção da eutanásia a situações de sofrimento causados por doença irreversível e fatal. O argumento segue mais ou menos assim: “A pessoa vai morrer daquela doença. É inevitável. Não há nada que a ciência médica possa fazer para reverter esse resultado. Mas, podemos poupar esse indivíduo a um lento e doloroso definhar e antecipar o momento da morte.” O argumento é forte e apelativo. No entanto, não podemos ignorar que ao ultrapassar o limite da inviolabilidade da vida humana – ainda que invocando razões humanitárias – abrimos um caminho perigoso, conhecido cientificamente como rampa deslizante (essa tendência pode ser observada nos países que aprovaram a eutanásia, e mesmo o aborto, há mais tempo), que rapidamente levantará outras solicitações, para as quais não teremos argumentos de combate. O que fazer quando uma pessoa saudável invocar um sofrimento psicológico insuportável? Ou quando um velho perder a vontade de viver? Que argumento invocaremos para limitar a sua liberdade de escolha ou para decidir que o seu sofrimento é diferente e menos válido do que o de outros? A questão, como se vê, está longe de ser simples. Ignorar os problemas éticos e morais que ela levanta não é sério. Não quero, nem posso, minimizar ou menosprezar o sofrimento de quem se vê envolto nos braços da morte. Mas, desde quando é que a ausência de sofrimento se tornou um valor ideal e absoluto? Não faço a apologia do sofrimento ou da dor. Não sou nem sádico nem estóico. A dor, no entanto, faz parte da vida. E, se bem fazemos em preveni-la e evitá-la quando possível, o ideal utópico de uma vida sem dor é reflexo de uma mentalidade hedonista, individualista e irrealista. Para mostrar como é complexa esta questão, não podemos deixar de considerar o impacto que o avanço das ciências médicas tem nesta causa. O prolongamento da esperança média de vida, o tratamento de múltiplas doenças antes fatais, a capacidade de salvar vidas in extremis com sequelas que o sobrevivo terá que lidar, as práticas (por vezes más) de prolongamento artificial da vida sem interferência no resultado expectável, criou dilemas éticos e morais tais como a definição de morte, onde parar um tratamento médico, quando desligar uma máquina de suporte avançado de vida, os testamentos vitais, ordens de não ressuscitação, etc. Neste caso, o progresso científico não só se mostrou incapaz de esclarecer qual o sentido da vida, como se revelou promotor de dilemas insolúveis sobre a morte e o morrer. Discutir a eutanásia separadamente destas questões é enviesamento ideológico. A resposta humana perante o sofrimento do outro é a compaixão, o sofrer com, proporcionando, na medida possível, empatia, apoio emocional e psicológico, amor e, obviamente, as melhores soluções médicas para o alívio da dor física. A este respeito, o debate e investimento nos cuidados paliativos deveriam estar na linha da frente.

Outra ordem de argumentos é a que envolve as pessoas próximas de quem pede para morrer. Perante o declínio inevitável do doente, o desejo de não se tornar um fardo, bem como o de poupar o sofrimento dos que lhe são próximos, a eutanásia surge como solução viável. Assim, com o devido tempo, todos podem preparar-se para a morte e fazer as despedidas nos seus próprios termos. Não ignoro, até por experiência, como o cuidar de alguém em fim de vida é, em boa medida, limitador da liberdade própria e exaustivo tanto a nível emocional como físico. Não desconsidero, contudo, que o modo como encaramos esse chamado foi profundamente transformado no último século. A industrialização, os progressos tecnológicos, a luta feminista e a entrada no mercado de trabalho da mulher, a revolução sexual, a alteração do conceito de família, a moderna definição de felicidade associada ao prazer e à liberdade, os avanços médicos e a medicalização da morte – que alterou irreversivelmente onde e como morremos -, o crescimento do chamado sector social – que profissionalizou o cuidado dos velhos, dos incapazes e dos desvalidos -, rasgou o tecido social assente em relações familiares e comunitárias fortes onde o cuidado dos fracos, doentes e velhos era visto como um dever ético, cívico e moral. Cito a carta Samaritanus Bonus, sobre o cuidados das pessoas nas fases críticas e terminais da vida, da Congregação para a Doutrina da Fé, do Vaticano (embora discordando teologicamente da Igreja Católica, neste assunto, estamos de acordo): “Sob o perfil clínico, os fatores que mormente determinam o pedido de eutanásia e suicídio assistido são: a dor não administrada; a falta de esperança, humana e teologal, induzida também por uma assistência humana, psicológica e espiritual muitas vezes inadequada por parte de quem cuida do doente. É isto que a experiência confirma: «as súplicas dos doentes muito graves que, por vezes, pedem a morte, não devem ser compreendidas como expressão de uma verdadeira vontade de eutanásia; nestes casos são quase sempre pedidos angustiados de ajuda e de afeto. Para além dos cuidados médicos, aquilo de que o doente tem necessidade é de amor, de calor humano e sobrenatural, que podem e devem dar-lhe todos os que o rodeiam, pais e filhos, médicos e enfermeiros». O doente que se sente circundado pela presença amorosa, humana e cristã, supera toda forma de depressão e não cai na angústia de quem, ao invés, se sente só e abandonado ao seu destino de sofrimento e de morte. (…) Portanto, a capacidade de quem assiste uma pessoa atingida por doença crônica ou na fase terminal da vida deve ser aquela de “saber estar”, vigiar com quem sofre a angústia do morrer, “consolar”, ou seja estar-com na solidão, ser co-presença que abre à esperança. Mediante a fé e a caridade expressas na intimidade da alma, a pessoa que assiste é capaz de sofrer a dor do outro e de abrir-se a uma relação pessoal com o fraco, que alarga os horizontes da vida para além do evento da morte, tornando-se assim uma presença plena de esperança. «Chorai com os que choram» (Rm 12, 15), porque é feliz quem tem compaixão ao ponto de chorar com os outros (cfr. Mt 5, 4). Nesta relação, que se faz possibilidade de amor, o sofrimento se enche de significado no com-partilhamento da condição humana e na solidariedade no caminho para Deus, que exprime aquela aliança radical entre os homens, que os faz entrever uma luz mesmo para além da morte. Isso nos faz ver o ato médico desde dentro de uma aliança terapêutica entre o médico e o doente, ligados pelo reconhecimento do valor transcendente da vida e do sentido místico do sofrimento. Tal aliança é a luz para compreender um bom agir médico, superando a visão individualista e utilitarista hoje predominante.”

Recupero a última expressão da citação anterior – “a visão individualista e utilitarista hoje predominante”-, para abordar o último argumento: a dignidade da pessoa humana. Aquilo que o debate da eutanásia demonstrou, nomeadamente nos países onde já se discute até onde se pode alargar o seu escopo, é como o valor e a dignidade da vida humana se tornou uma questão utilitária. Num desses países (Holanda) o debate actual está centrado na possibilidade de disponibilizar, em venda livre nas farmácias, meios farmacológicos para alguém, maior de 75 anos, pôr termo à sua vida por sentir que já cumpriu o seu caminho aqui. A mensagem clara que é dada à sociedade e cultura é que a vida só tem valor na medida da sua prestabilidade e contributo para o bem comum. Se estou velho e já não sou produtivo, se estou doente e sou dependente, se não sou útil, devo considerar-me diminuido na minha dignidade e, para evitar embaraços e não ser um fardo para os outros devo elegantemente (esse é o aspecto mais perverso da questão, tornar o mal em bem) escolher morrer. A dignidade da vida humana deixou de ser um valor intrínseco e inalianável para reflectir um conceito de qualidade de vida arbritário, utilitário e desumano. Por outro lado, a afirmação da dignidade intrínseca de cada ser humano e da inviolabilidade da vida é o fundamento da defesa de direitos iguais para todos os Homens independentemente de “raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação” (Declaração Universal dos Direitos Humanos). Removido este fundamento, através da redefinição dos seus termos, expomo-nos a atrocidades tais como delírios eugénicos, racismo, exploração sexual, conflitos étnicos, e sim, a morte dos fracos, doentes, portadores de deficiência, e velhos como sub-produtos humanos reduzidos à irrelevância.

Wesley J. Smith, norte-americano reconhecido pelo seu trabalho público na àrea da bioética, resumiu numa entrevista o problema da seguinte forma: “O objectivo do Governo (e da cultura e sociedade) costumava ser proteger a vida de todos os cidadãos, incluindo os suicidas. Agora, o objectivo é proteger de todo o sofrimento. Esta é uma ideia utópica. Quando o objectivo é eliminar o sofrimento como o maior mal, isso rapidamente metastisa para eliminar o sofredor. A eutanásia tem uma permissa, e é: matar é uma opção legítima para acabar como o sofrimento humano. A eutanásia não é sobre os doentes terminais. Há doentes que sofrem muito mais, e mais tempo. Isso é a porta de entrada para que as pessoas aceitem a permissa e, aí começa a rampa deslizante.” Em contraste, Smith afirma: “Amor é passar da agenda da morte para a agenda do cuidado“.

Termino citando novamente Walter Osswald no seu ensaio “Sobre a Morte e o Morrer” publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos:

“Sendo indissociáveis, no percurso de cada pessoa, a vida e a morte, a sua ligação fará sentido total se o esforço de viver uma vida boa for coroada pela boa morte. Para isso, como nos adverte o grande Paul Ricoeur no título do seu livro, importa estarmos “Vivos até à morte”. Creio que me será permitido, ao concluir este breve ensaio, em que me esforcei por dar lugar a outras vozes, dizer algo da minha própria convicção. Encontrei-a muito melhor exposta no pensamento de Julián Marías, talvez o mais original dos construtores da escola a que já se tem chamado o segundo século de ouro da filosofia espanhola. Diz ele: “Importam-me muito mais algumas coisas e sobretudo algumas pessoas. Mas, se no dia em que morrer, que certamente já está próximo, tudo acabar, deixarei de me importar com essas coisas e essas pessoas e então nada tem importância, nada tem última importância. Mas, e se não for assim? Se depois da morte continuarmos a viver? Então não acontecerá apenas que essas coisas continuarão a ser importantes para mim, mas também que durante o tempo que estou neste mundo terei escolhido livremente quem pretendo ser, quem quero ser para sempre. E então, precisamente então, comprometi-me a ser para semrpe (e não apenas para um tempo limitado) esse tal que quero ser, esse que me esforço por ser. É então que tudo, concretamente este mundo, tem verdadeira importância: porque estou a fazer, a querer, a dizer algo que é para sempre.” Esta imagem de eternidade só faz sentido, para mim como para uma multidão de outros, porque, como belamente o exprime José Mattoso, “…em Deus temos o dom da vida. N’Ele todas as contradições se resolvem, todas as perguntas têm a sua resposta, todos os desejos são cumpridos, todas as lágrimas são enxugadas.“”

Pensando Biblicamente

Quando Jacó chegou ao Egipto a convite do seu filho José este apresentou-o a Faraó. O diálogo que travaram é desolador:

“E Faraó disse a Jacó: Quantos são os dias dos anos da tua vida?
E Jacó disse a Faraó: Os dias dos anos das minhas peregrinações são cento e trinta anos, poucos e maus foram os dias dos anos da minha vida, e não chegaram aos dias dos anos da vida de meus pais nos dias das suas peregrinações.” (Gênesis 47:8,9)

É desolador que para tantos a vida seja um desencanto. Talvez por isso tenhamos com a morte uma relação agridoce. Embora em boa medida ela nos aterrorize, em alguns momentos, uma avaliação desesperada da vida conduz-nos a cortejá-la. As Escrituras não escondem essa tensão. Logo nos primeiros capítulos de Génesis a morte entra de rompante num fraticídio trágico causado pelo ciúme. A partir daí não mais parou. A mulher de Jó aconselhou-o a amaldiçoar a Deus e morrer para acabar com o seu sofrimento. O Rei Saul, após perder uma batalha, pede a um escudeiro que lhe tire a vida para poupar-lhe a agonia da morte e a vergonha. Jonas, frustrado com a misericórdia divina mostrada aos ninívitas, pede que Deus o mate quando perde a sombra que o abrigava.

O que cada um destes episódios têm em comum é a censura firme que lhes é feita. O homicídio perpretado por Caim foi duramente condenado por Deus: “Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra. E agora maldito és tu desde a terra.” (Gênesis 4:10,11). Jó afastou o conselho de suicídio da mulher dizendo: “Como fala qualquer doida, falas tu; receberemos o bem de Deus, e não receberíamos o mal?” (Jó 2:10). Davi mandou matar o escudeiro que cumpriu o desejo de eutanásia de Saul como se fosse um homicida, “O teu sangue seja sobre a tua cabeça, porque a tua própria boca testificou contra ti, dizendo: Eu matei o ungido do Senhor.” (2 Samuel 1:16) E, no caso de Jonas, Deus censurou a sua displicência: “Fazes bem que assim te ires?” (Jonas 4:4). Seja qual for a forma como causamos ou buscamos a morte ela é sempre condenada nas Escrituras (excepção feita a contextos de guerras, castigos legais – pena de morte, e, defesa da própria vida). O mandamento “Não matarás!” (Ex. 20:13) é uma lembrança solene que tanto a vida como a morte pertencem ao Senhor.

Ao esclarecer como um cristão deve interpretar a sua liberdade em Cristo, o apóstolo Paulo lembra que, acima de tudo, “somos do Senhor” (Rm.14:8). Por isso, se vivemos, é por Ele e para Ele. Se morremos, é por Ele e para Ele. É Deus quem dá a vida e quem tem a autoridade de tomá-la de volta. Atentar contra a própria vida ou a de outro é desprezar a dádiva de Deus e tomar para si, em rebelião, uma autoridade que apenas pertence ao Senhor. Na verdade, descansar no facto de que somos do Senhor, conduz-nos a gozar da mais ampla das liberdades, desfrutando da vida enquanto dádiva de Deus e estando em paz na morte porque “Bem-aventurados os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem dos seus trabalhos, e as suas obras os seguem” (Apocalipse 14:13). Essa é a experiência da verdadeira fé em Deus.

Não julguemos, no entanto, que o mandamento inscrito nas tábuas de pedra se esgota na ausência de facilitar a morte de alguém. O Senhor Jesus deixou isso bem claro no ensino do Sermão do Monte.

“Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar será réu de juízo.
Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do inferno.
Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti,
Deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois, vem e apresenta a tua oferta.” (Mateus 5:21-24)

A proibição de matar encerra em si muito mais do que a violência do homicídio, suicídio e eutanásia. Nela está a proibição de fazer acepção de pessoas, de humilhar, e tratar indignamente. Condena-se o abandono, a falta de compaixão e misericórdia. As proibições servem, na verdade, o propósito de enaltecer o segundo grande mandamento – amarás ao teu próximo como a ti mesmo. “Não matarás” é um apelo à reconciliação, à paz, ao bem do outro.

Prática e Vida

Para mim, como cristão, isso significa que a minha luta não é contra a morte, mas em defesa da vida. Não basta dizer não à eutanásia (e o mesmo em relação ao aborto). O mandamento das Escrituras amarra-me à compaixão, à misericórdia, à reconciliação e ao bem do meu próximo. Aqueles que desesperam no seu sofrimento e procuram a morte não podem ficar sem respostas, nem abandonados no seu sofrimento. O mundo já ofereceu uma solução – o remédio para o sofrimento é a morte. Temos uma resposta melhor – Cristo! Cristo, conhecido no Evangelho proclamado, e Cristo, experimentado no Evangelho vivido que me leva a estar ao lado dos que sofrem e choram para servi-los com a minha vida.

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