Leitura recomendada: Mateus 27:33-44; Marcos 15:22-32; Lucas 23:32-43

As seis horas mais negras da História começam com duas afirmações de Graça e Perdão.

A primeira é uma expressão do espírito manso e humilde de Jesus: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem.”. O exemplo de Jesus de amar os inimigos e estender perdão aos que ofendem tem sido a marca dos mártires ao longo dos séculos. Lembremo-nos de Estevão que, ao ser apedrejado, rogava a Deus pelo perdão dos que o maltratavam. Lembremo-nos de Corrie ten Boom, uma filha de Deus enviada para um campo de concentração nazi por acolher e esconder judeus durante a II Guerra Mundial. Anos mais tarde, tendo sobrevivido aos horrores da guerra, no final de um culto numa igreja em Munique durante o qual falara sobre o Deus que perdoa, vê um homem caminhando na sua direcção. À medida que ele se aproxima, as memórias dos sofrimentos passados são reavivadas pelo rosto familiar. Tratava-se de um dos guardas do campo onde estivera prisioneira. O seu corpo tremia todo. A mente acelerava, o coração quase saía do peito. Quando o homem finalmente chega perto dela, apresenta-se como um dos guardas do campo de concentração onde ela estivera detida. Ele não a reconhecia – talvez porque na bestialidade dos horrores praticados era mais fácil não atribuir rostos a quem se tratava com tanta desumanidade. O homem conta que após o fim da guerra conhecera a Cristo e encontrara n’Ele perdão para o seu passado sombrio. Agora, ele também era um cristão. “Vim para pedir-lhe perdão!”, disse o homem. Corrie sabia o que devia fazer mas sentia-se incapaz de o fazer. No seu íntimo rogou a Deus que a ajudasse, e estendeu a mão. Uma sensação de paz interior e amor inundou ambos no toque perdoador.

Muitas outras histórias poderiam ser contadas. O perfume suave da Graça tem sido levado a todo o lado pela Igreja. Confiados na Justiça de Deus, deixamos a vingança (leia-se, a reposição da justiça) nas mãos do Senhor, e entregamo-nos ao amor, à paz e ao perdão.

A segunda expressão da Graça, porém, não está ao alcance de nenhum Homem. Jesus responde ao apelo de um dos crucificados e diz: “Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso.”. Este estender de perdão ultrapassa as injúrias antes proferidas contra Ele. O que está em causa não é a ofensa particular e pessoal contra o homem Jesus, mas uma vida inteira de pecado numa ofensa ignóbil e monstruosa contra o Deus Santo. Nenhum Homem pode conceder tal perdão, apenas Deus tem poder para perdoar os pecados. Pendurado na Cruz, acusado de heresia pelos líderes judeus, Jesus assume totalmente a Sua Missão e a Sua Natureza. Ele é totalmente Deus. Ele fez-se homem com um propósito. Ele veio para salvar os pecadores. Ali, mesmo no momento em que, pelo Seu sacrifício voluntário, cumpria todas as exigências de justiça da Santidade divina – que é digno de morte aquele que pecar, Jesus concede, sem preço, pela Graça, mediante a Fé, o dom da Vida Eterna que só pode ser dado ao que crê, a um homem que merecia o castigo e nunca teria oportunidade de praticar nenhuma boa obra que mudasse o seu destino.

Em nenhum outro momento de que me lembre, o escândalo da Graça foi mais evidente. Outros homens maus têm encontrado o perdão. O nazi que se rendeu a Cristo. O zeloso Saulo, perseguidor da Igreja e de Cristo, que ficando cego na estrada para Damasco, viu pela primeira vez a glória excelente d’Aquele a quem perseguia. Paulo teve que enfrentar as dúvidas dos cristãos quanto à credibilidade da sua conversão. Só com a evidência do seu viver transformado foi, aos poucos, aceite pela Igreja. Embora confessemos nos nossos Credos que a Salvação é pela Graça e mediante a Fé, não pelas obras ou méritos de cada um, mas exclusivamente pelos méritos de Cristo, o nosso sentido inato de auto-piedade e justiça própria insiste em convencer-nos que, lá no fundo, conseguimos provar a Deus que Ele não se enganou quando nos perdoou. É que nós até merecíamos. Certamente não temos a ousadia de colocar este sentimento em tantas palavras, mas, o incómodo que sentimos quando um “grande” pecador é perdoado é sinal evidente do que vai no nosso coração. É por essa razão que o Catolicismo Romano criou a ideia do purgatório. O papa Paulo VI disse: “Cremos na vida eterna. Cremos que as almas de todos aqueles que morrem na graça de Cristo – quer ainda tenham que fazer expiação no fogo do purgatório, ou desde o momento em que deixam os seus corpos sejam recebidos no Paraíso por Jesus Cristo, tal como o bom ladrão – vão formar o Povo de Deus que vence a morte, a qual morte será totalmente destruída no dia da Ressurreição quando estas almas forem reunidas aos seus corpos.” (Creed of the People of God, 28). O perdão do bom ladrão, como lhe chama, é visto como a excepção única e irrepetível, de alguém que foi integralmente perdoado sem oportunidade de mostrar boas obras. Todos os outros casos terão de fazer a “sua expiação” no purgatório. Esta heresia faz tamanha violência ao acto salvífico de Cristo que o destrói por completo. Se somos incapazes de crer na declaração de Jesus que diz: “Na verdade te digo…” como creremos em todas as outras coisas que Ele declarou solenemente?

Na verdade, na verdade vos digo que quem ouve a minha palavra, e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida. João 5:24

Na verdade, na verdade vos digo que aquele que crê em mim tem a vida eterna. João 6:47

Na verdade, na verdade vos digo que, se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto. João 12:24

Na verdade, na verdade vos digo que aquele que crê em mim também fará as obras que eu faço, e as fará maiores do que estas, porque eu vou para meu Pai. João 14:12

Na verdade, na verdade vos digo que vós chorareis e vos lamentareis, e o mundo se alegrará, e vós estareis tristes, mas a vossa tristeza se converterá em alegria. João 16:20

E naquele dia nada me perguntareis. Na verdade, na verdade vos digo que tudo quanto pedirdes a meu Pai, em meu nome, ele vo-lo há de dar. João 16:23

Ao mesmo tempo que o nosso “fariseu interior” se incomoda, há uma consolação inexcedível nesta promessa de Jesus: há Graça abundante e Perdão para todos os que vierem.

Todas as vozes que se ouviam no Calvário eram contrárias a Jesus. Os líderes judeus. A multidão. Os soldados romanos. E, segundo Mateus e Marcos, os dois malfeitores crucificados ao lado de Jesus, todos blasfemavam dele e O insultavam. Mas, não eram só as palavras que O feriam. O título colocado sobre a sua cabeça: “Este é o Rei dos judeus” era uma humilhação. A coroa de espinhos que se cravava no crânio. A cruz do meio, entre dois conhecidos malfeitores, fazendo-O o principal entre eles. Nenhuma destas armadilhas tenebrosas e diabólicas poderia, no entanto, impedir a Obra gloriosa que se operava naquelas horas. A Cruz do meio torna-se cada vez mais central. A atitude do homem lá pendurado deixa todos perplexos. A conversa dos dois salteadores torna-se a parábola perfeita do Evangelho.

Enquanto um dos ladrões insiste na blasfémia, o outro detém-se. Os dois viam o mesmo Cristo, na mesma Cruz, dizendo as mesmas coisas. Mas, o efeito que isso teve num e noutro demonstra o modo como as pessoas reagem ao Evangelho: uns com indiferença e endurecendo cada vez mais o coração, outros sendo conquistados pelo amor chegam ao arrependimento e à fé. Não sabemos exactamente o que fez aquele homem mudar de ideias. Ele que momentos antes injuriava a Jesus agora defende-o. Talvez tenha sido o silêncio manso com que Jesus suportava a afronta. Talvez as palavras de perdão que estendeu aos que O cravavam na Cruz. Talvez a tábua sobre a Sua cabeça que o proclamava como Rei. Talvez alguma lembrança dos actos de bondade e misericórdia que praticou. Talvez tudo isso. Em meio à loucura desenfreada do Gólgota, ele viu em Jesus um homem diferente, uma promessa diferente, uma esperança real.

R. C. Sproul definiu arrependimento assim no seu livro “O que é o arrependimento”: “O conceito central do arrependimento no Antigo Testamento pode ser resumido numa palavra: conversão. Esta palavra faz parte da linguagem habitual dos Cristãos e é o ponto focal do chamado profético ao arrependimento. Ninguém nasce Cristão. Para que alguém se torne um Cristão, alguma coisa precisa acontecer que transforme radicalmente essa pessoa. Isto está ligado ao conceito bíblico de metanoia, uma mudança de mente que não é apenas um ajuste intelectual a um conceito, mas a mudança da nossa vida inteira. Para o profeta, o arrependimento não é meramente um ritual religioso, mas a conversão integral da alma. Significa a mudança total do nosso ser.” Será que esta definição pode ser aplicada ao ladrão na Cruz? Pode alguém que morreu algumas horas depois demonstrar tal arrependimento?

Consideremos os acontecimentos. Ele silenciou as suas blasfémias. Condenou o outro por injuriar a Jesus. Admitiu a sua culpa e merecimento do castigo. Exortou o outro a arrepender-se. Confessou que Jesus estava a ser castigado injustamente porque era inocente. Reconheceu Jesus como Senhor. Creu na eternidade. Desejou passar essa eternidade com Jesus. Creu na vitória de Cristo mesmo vendo-o pendurado na Cruz. Desejou estar com Cristo para sempre e não apenas ver-se livre da sua cruz, como o outro ladrão. Humildemente, apenas foi capaz de pedir: “lembra-te de mim…”. Este homem mostrou tantos frutos de arrependimento quantos a sua situação peculiar lhe permitia. Não foi batizado. Não tomou parte da Ceia do Senhor. Não testemunhou da fé. Não praticou boas obras. Fez aquilo que podia fazer e, afinal, a única coisa que era necessário fazer: creu. E isso lhe foi imputado por justiça.

Ao seu rogo Jesus respondeu com perdão e esperança. “Na verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso.”. O estar é afirmado. A comunhão com Ele é afirmada. A felicidade eterna e consciente é afirmada. O tempo é afirmado. HOJE. Assim que os seus olhos se fechassem neste mundo, ele entraria no Descanso. O maior terror daquele homem – a morte – foi naquele momento vencido pelas palavras consoladoras de Jesus. Do outro lado, estaria Jesus para recebê-lo no Paraíso.

Mas, como? Porque Jesus se recusou a ceder à tentação do diabo no deserto quando lhe prometeu todos os reinos do mundo se o adorasse. Porque Jesus orou no Getsémani: “Faça-se a Tua vontade e não a minha”.  Porque Jesus se entregou em silêncio nas mãos dos acusadores. Porque não saiu da Cruz quando foi desafiado. Porque olhou aquele ladrão que lhe pedia perdão e tomou sobre si os pecados dele – e tantos que eram –  para suportar na sua vez o castigo e a ira do Pai. Porque suportou o castigo até ao fim e disse: “Está consumado!”. O maior acto de justiça praticado no Calvário naquele dia não foi o do ladrão arrependido, foi de Cristo. Por isso, tomamos o ladrão como exemplo de arrependimento, confissão e humildade, mas celebramos a Jesus Cristo como Senhor e Salvador. Só Ele é digno do nosso amor. Só Ele merece a nossa gratidão. Só Ele deve ser adorado. Porque fomos salvos da mesma maneira do que aquele ladrão. Tal como a Reforma trouxe de novo à luz: Sola Gratia, Sola Fides, Solus Christus. Somente a Graça. Somente a fé. Somente Cristo. Para que também, tanto hoje como eternamente, Soli Deo Gloria, Somente Glória a Deus.

Termino com um poema de Phillip P. Bliss: “Hallelujah! What a Savior!” (Aleluia! Que Salvador!)

“Homem de Dores!” que nome

Para o Filho de Deus, que veio

Pecadores arruinados reclamar.

Aleluia! Que Salvador!

Suportando a vergonha e o rude escarnecer

No meu lugar condenado ficou

Selou o meu perdão com seu sangue

Aleluia! Que Salvador!

Culpado, vil e sem esperança era eu;

Cordeiro de Deus sem mácula era Ele;

Salvação completa! Poderá ser?

Aleluia! Que Salvador!

Levantado para morrer Ele foi;

“Está consumado” o seu clamor;

Agora no Céu está exaltado.

Aleluia! Que Salvador!

Quando Ele vier, o nosso Rei glorioso

Todos os seus remidos para Casa levar

Esta nova canção cantaremos:

Aleluia! Que Salvador!

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