As horas iam longas. Longas e duras. Cheias de escárnio, de violência, e desprezo. As feridas da ira dos Homens, e os horrores da ira de Deus esmagaram o Seu corpo. Ao contemplar a cena da Cruz somos tentados a mistificar a morte do Cristo, o Deus-Homem com capacidades sobre-humanas que realizou uma obra que nenhum mortal poderia efectuar. O estertor da Morte logo nos traz de volta à realidade física, crua e sangrenta. Jesus, o Filho do Homem, inteiramente Homem, suportando no seu corpo a ira. Toda a violência a que fora sujeito, o sangue que perdera, a agonia da cruz, o peso da mão do Pai, esgotaram a Sua humanidade. A Morte vinha depressa.
“Tenho sede”. (João 19:28) As palavras murmuradas do alto da Cruz garantem-nos que “convinha que em tudo fosse semelhante aos irmãos, para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote naquilo que é de Deus, para expiar os pecados do povo. Porque naquilo que ele mesmo, sendo tentado, padeceu, pode socorrer aos que são tentados.” (Hebreus 2:17-18)
“Dá-me de beber”. (João 4:7) Num outro momento de humanidade, Jesus, cansado da viagem pára junto a um poço, numa hora de calor e busca refrescar-Se. Interpela uma mulher. Pede-lhe de beber. Mas, quem acaba dessedentado é a mulher. A água Viva que ela recebeu nesse dia nunca mais cessou. Mesmo na fraqueza da sua humanidade, Jesus não se distrai da Sua missão. Mais tarde, nesse dia, explicaria aos discípulos aquilo que O sustentava. “A minha comida é fazer a vontade d’Aquele que me enviou.” (João 4:32) A Sua humanidade, ainda que tão frágil como a nossa, foi sempre mantida sujeita ao plano, propósito e vontade do Pai. A experiência de Jesus é também a de muitos servos de Deus. Lembremo-nos de Moisés que foi sustentado pelo Senhor durante 40 dias na montanha, enquanto recebia a Lei das mãos do Todo-Poderoso. Mas, Cristo é o exemplo máximo dessa submissão.
Na Cruz, Jesus não perdeu de vista o Seu propósito. Primeiro, “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. “Hoje, estarás comigo no Paraíso”. “Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?”. “Mulher, eis aí o teu filho. Filho, eis aí a tua mãe”. Primeiro, a vontade do Pai. Primeiro, o Cordeiro que sofre em silêncio, sem queixumes, sem retaliação. Primeiro, carregando as feridas e pisaduras por Amor dos que viera salvar. (Isaías 53) No fim, quando a Obra estava feita, Ele solta o lamento da Sua humanidade: “Tenho sede.” O Seu corpo frágil, sucumbia às ânsias da Morte.
Por duas vezes nesse dia deram de beber a Jesus. Primeiro, ao chegarem ao Gólgota, o Lugar da Caveira, deram-Lhe vinho com fel. (Mateus 27:34) Os soldados queriam entorpece-Lo para que não sentisse a dor excruciante dos cravos a trespassarem a Sua carne. Queriam lançá-Lo num limbo dos sentidos para suavizar a violência da tortura a que seria sujeito entre o Céu e a Terra. Essa é a reacção do Homem perante o horror da Cruz. Procuramos suaviza-la. Torna-la aceitável. Suportável. Esse nosso esforço é compreensível. Ninguém quer confrontar-se com a culpa de matar um Inocente. Ninguém quer ver-se capaz de tanta crueldade. A violência da Cruz incomoda-nos. A vergonha da Cruz faz-nos desviar o olhar. Mas, Ele não bebeu. Jesus queria estar perfeitamente preparado e consciente para realizar a Obra que o Pai lhe confiou. E, se queremos as bençãos da Cruz, também temos que aceitar a Cruz como ela é, a rude Cruz, emblema de afronta e de dor. E, prontamente confessar que, “aqui com Jesus, a vergonha da Cruz quero sempre levar e sofrer”, para que, “Quando Cristo voltar, quando ao Céu me levar, Sua glória eu possa receber.”
Agora, era Jesus que pedia de beber. “Tenho sede”. E, deram-lhe vinagre. (João 19:29) A resposta do Homem perante o sacrifício consumado do Cristo, a reacção às palavras de Esperança que saíram da Sua boca enquanto O maltratavam foi amarga. O suposto consolo e conforto que deram a Jesus apenas agravou o Seu sofrimento. A acidez do vinho azedo penetrando as Suas feridas ardia como fogo. A reacção do corpo era violenta, prolongando o sofrimento. No entanto, Ele bebeu, e suportou a última afronta de rebelião. Como diz, “Amando os Seus, Amou-os até ao fim”. (João 13:1)
Porquê? Por que é que Jesus se expôs à última violência? Por que ainda não estava tudo dito. Depois, da agonia no Jardim, da prisão e julgamentos sucessivos, do desprezo, das mentiras, dos abusos, do chicote, do arrastar da Cruz pesada, dos cravos, da coroa de espinhos, das quase 6 horas na Cruz, e com a Morte fechando as garras sobre o Seu corpo, Ele mal conseguia respirar. Os braços já não suportavam o peso do Seu corpo. A espaços, com muito esforço e dor, Ele erguia-Se sobre os pés, também eles cravados no Madeiro, e numa golfada, inspirava pela boca o máximo de ar que conseguia. A Sua boca estava seca. Os lábios gretados. A língua inchada e presa ao palato. Já mal conseguia respirar, quanto mais falar. Mas, ainda havia algo a dizer. O sacrifício não podia terminar em derrota, sem Esperança. Pediu de beber. Algo para molhar os lábios e a língua a fim de poder articular as palavras que precisava proclamar em alta voz. Não Lhe importava o sofrimento. Esta era a hora para que tinha vindo. E, tendo molhado os lábios, da Sua boca saíram as Palavras pelas quais toda a Criação ansiava. A vitória estava ganha. “Está consumado”. (João 19:30)